Antes de nascer o mundo Crítica

Antes de nascer o mundo, de Mia Couto

06:30Angélica Pina

“Eis a lição que aprendi em Jerusalém: a vida não foi feita para ser pouca e breve. 
E o mundo não foi feito para ter medida.”

Distante de tudo e de todos, em Moçambique, está um lugar batizado por Silvestre Vitalício de Jerusalém, onde os únicos seres viventes são ele, Mwanito, seu filho, ainda criança e narrador da história, Ntunzi, o outro filho, Zacaria Kalash, ex-militar e serviçal da família e Tio Aproximado, seu cunhado, que vem de vez em quando trazer abastecimento ao acampamento. 

Depois da morte de Dordalma, sua mulher, Vitalício decide que eles não terão mais contato com o mundo, aliás, ele afirma com convicção que já não existe mais nada, o mundo acabou e só restaram eles na Terra. Refugia-se em Jerusalém, tentando anular tudo que possa trazer lembranças de sua vida passada e declarando que os filhos não têm direito a nenhum tipo de recordação.

“Para Silvestre o passado era uma doença e as lembranças um castigo. 
Ele queria morar no esquecimento. Ele queria viver longe da culpa.”

“– Eu preciso entender, cunhado: por que razão insiste em ficar aqui? Foi problema na Igreja? 
– Na Igreja? – Sim, conte-me, eu preciso entender. – Para mim há muito que não há Igreja. 
– Não diga isso... – Pois digo e repito. De que vale ter crença em Deus se perdemos a fé nos homens? – Foi problema de política? – Política? A política morreu, foram os políticos que a mataram. Agora, restou apenas a guerra. – Assim não dá para falarmos. Você anda em círculos, vagueando por palavras. – É por isso que eu digo: vá-se embora.”

Mwanito tinha apenas três anos de idade quando perdeu a mãe, por isso não tem qualquer lembrança do seu passado. Não conhece o mundo “do lado de lá”, sua infância resume-se ao que há em Jerusalém e às pessoas que com ele habitam. Ele sonha com sua mãe, mas não consegue vê-la ou ouvi-la, já que desde que foi exilado em Jerusalém, nunca viu uma mulher e não tem referências para imaginar como seria a voz ou a aparência de Dordalma. Ele tem apego pelo pai e percebe que, no fundo, a postura de Silvestre envolve certo zelo pela família, mas sente falta de demonstrações de afeto e carinho.

“Diligencioso, Vitalício se ocupava em nos criar, com cuidados e esmeros. 
Mas evitando que o cuidado resvalasse em ternura. Ele era homem. 
E nós estávamos na escola de ser homens. Os únicos e últimos homens.”

“(...) eu, incapaz de domar o medo, fui procurar abrigo debaixo da cama de meu pai. 
Naquela clandestina intimidade, abraçado ao frio do chão, me embalei com o ressonar dele. 
Pouco depois, porém, fui surpreendido e ele me expulsou com severidade. 
– Pai, por favor, me deixe, só uma vez, dormir junto consigo. 
– Onde se dorme junto é no cemitério.”

Em um dia aparentemente normal, uma figura estranha surge em Jerusalém para transformar definitivamente a vida de seus poucos moradores: Marta, uma portuguesa que foi à África para tentar reencontrar seu marido, que partiu de Lisboa provavelmente para encontrar-se com uma amante. Ela traz à Silvestre palavras que tocam em suas feridas abertas, provocando ira e loucura ao homem. Para Mwanito, ela traz a imagem materna, uma aparência que o permite começar a construir em sua mente como sua mãe pode ter sido.

Em meio a muitas metáforas e uma linguagem delicada e poética, Mia Couto traz reflexões sobre diversos assuntos: o verdadeiro sentido da vida e da existência, medos, desejos, solidão, amor, loucura, aceitação, negação...

Impossível não se emocionar com a história! (E difícil escolher alguns quotes, já que a narrativa inteira é marcada por passagens incríveis!)

“Essa alucinação que uma vez sentira, eu sabia, era viciante como morfina. 
O amor é uma morfina. Podia ser comerciado em embalagens sob o nome: Amorfina.”

“Não chegamos realmente a viver durante a maior parte da nossa vida. Desperdiçamo-nos numa espraiada letargia a que, para nosso próprio engano e consolo, chamamos existência. 
No resto, vamos vagalumeando, acesos apenas por breves intermitências.”





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