A Jangada de Pedra Cia das Letras

A Jangada de Pedra, de José Saramago

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“Em várias artes, e por excelência nessa de escrever, o melhor caminho entre dois pontos, ainda que próximos, não foi, e não será, e não é a linha a que chamamos recta, nunca por nunca ser, modo este enérgico e enfático de responder a dúvidas, calando-as.”

Portugal e Espanha são países vizinhos, que dividem entre si a península Ibérica. Diante disso, imagine o que aconteceria se, misteriosamente, a península se separasse do território europeu e começasse uma navegação sem rumo pelo oceano Atlântico? É exatamente sobre essa insólita aventura que Saramago nos conta nesse livro que é uma fantasiosa história de dois países que além de serem vizinhos de território, são irmãos de idioma e íntimos culturalmente.

“Nem todas as coisas nascem umas para as outras.”

Marcado por reflexões sobre a vida e a política nos países ibéricos, a obra conta a história de diferentes personagens que, ao presenciarem acontecimentos ordinários se transformarem em fantásticos, são acometidos de terríveis dúvidas... Joana Carda risca o chão com uma varinha e se sente culpada pela separação da península. Maria Guavaira começa por desfazer uma meia de lã azul que nunca acaba, e os fios se amontoam em um novelo como se fosse uma nuvem. Joaquim Sassa lança uma pedra ao mar, em uma distância e força muito superior ao que ele seria capaz de lançar. José Anaiço passa a ser seguido de maneira inexplicável por uma revoada de estorninhos. Pedro Orce consegue captar vibrações vindas do solo, como se fosse capaz de sentir a cisão das rochas ao dividir o continente. E, por fim, Constante, o cão, oriundo da região de Cerbère, é tido como um cão vindo das profundezas do inferno, e que passa a seguir Pedro Orce e também a sentir as vibrações vindas do chão.

“Um planeta que anda à volta duma estrela, a girar, a girar, ora dia, ora noite, ora frio, ora calor, e um espaço quase vazio onde há coisas gigantescas que não têm outro nome a não ser o que lhe damos, e um tempo que ninguém sabe verdadeiramente o que seja, isto tudo também tem de ser coisa de doidos.”
Com uma mistura entre fantasia e os fatos sobre Portugal e Espanha, mais do que contar história de pessoas que se cruzam em uma viagem sem rumo da Ibéria pelo oceano, o livro é um tratado sobre a identidade desses países e a crise cultural de uma Europa sem fronteiras. Preteridos no cenário europeu, o descolamento da Europa e o lançar-se pelo mar é uma alusão aos países pioneiros na exploração marítima no século XV e que se tornam passivos na tomada de decisões da Europa no século XX.

Refletindo o momento de uma possível derrubada de barreiras econômicas, culturais e fronteiriças para a formação da União Europeia, o livro reflete acerca da soberania e identidade desses países. 

“Claridade e obscuridade são a mesma sombra e a mesma luz, o escuro é claro, o claro é escuro, e quanto a ser alguém capaz de dizer de facto exatamente o que sente ou pensa, imploro-te que não acredites, não é porque não se queira, é porque não se pode, Então por que é que as pessoas falam tanto. É só o que podemos fazer, falar, ou nem sequer falar, tudo são experimentos e tentativas.”

A península, que parecia rumar à América do Norte, desperta o interesse do governo americano, que propõe acordos de anexação. A população, incapaz de determinar o rumo de sua própria terra, se vê impotente, podendo confiar apenas nas mãos dessas forças ocultas que determinam não apenas o rumo da história, mas o próprio rumo dessa grande jangada de pedra que se tornou o território de suas nações. Mais do que assinalar uma diferença entre portugueses e espanhóis, essa louca aventura reafirma a identidade desses países como que tendo por sorte um único e mesmo destino.
Esse não é um livro para iniciantes no universo de Saramago. Repleto de longos períodos, inexistência de pontuação, diálogos que se entremeiam com narrativa, essa obra representa a singularidade da escrita do nobel português. Mantidas as expressões de Portugal, o livro, a pedido do escritor, não passou por adaptações para outros países lusófonos.

O que mais me fascina em A jangada de pedra, assim como na maioria das obras de Saramago, são as reflexões que acompanham a narrativa. O que constrói as obras de Saramago não são enredos e tramas cheias de suspense, mas a riqueza de conteúdos e pensamentos que acompanham cada personagem e cada evento. Para mim, foi uma leitura fluida e envolvente, que me levou a várias pausas de reflexão sobre o próprio ser humano.

“A morte é a suma razão de todas as coisas e sua infalível conclusão, a nós o que nos ilude é esta linha de vivos em que estamos, que avança para isso a que chamamos futuro só porque algum nome lhe havíamos de dar, colhendo dele incessantemente os novos seres, deixando para trás incessantemente os velhos seres a que tivemos de dar o nome de mortos para que não saiam do passado.”






Fernando Ruiz Rosario. Piracicabano, graduado em Filosofia pela UFSCar e mestrando na mesma área na UFMG. Gasta seu tempo livre com fotos, livros, séries, filmes, viagens e longas discussões.


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