Texto da semana

TEXTO DA SEMANA: A Morte, o Tempo e o Velho, de Mia Couto

10:33Isabela Lapa



O homem se via envelhecer, sem protesto contra o tempo. Ansiava, sim, que a morte chegasse. Que chegasse tão sorrateira e morna como lhe surgiram as mulheres da sua vida. Nessa espera não havia amargura. Ele se perguntava: de que valia ter vivido tão bons momentos se já não se lembrava deles, nem a memória de sua existência lhe pertencia? Em hora de balanço: nunca tivera nada de que fosse dono, nunca houve de quem fosse cativo. Só ele teve o que não tinha posse: saudade, fome, amores.

Como a morte tardasse, decidiu meter-se na estrada e caminhar ao seu encontro. Tomou a direcção do oeste. Na sombra desse ponto cardeal, todos sabemos se encontra a moradia da morte.

Iniciou a sua excursão rumo ao poente sem que de ninguém se despedisse. Os adeuses são assunto dos vivos e ele se queria já na outra vertente do tempo. Caminhava há semanas quando avistou um homem alto, um rosto de enevoados traços. Trazia pela trela um bicho estranho, entre cão e hiena. Animal mal-aparentado, com ar maleitoso.

- Esta é a morte - disse o homem apontando o cão. E acrescentou - Sou eu que a passeio pelo mundo.

- E você quem é?

- Eu sou o Tempo.

E explicou que caminhavam assim, atrelados um ao outro, desde sempre. Ultimamente, porém, a Morte andava esmorecida, quase desqualificada. Razão de que, entre os vivantes, se desfalecia agora a molhos vistos, por dá cá nenhuma palha. Morria-se mesmo sem intervenção dela, da Morte.

O velho, desiludido, explicou ao Tempo a razão da sua viagem. Ele vinha ao encontro da Morte:

- Eu queria que ela me levasse para o sem retorno.
- Vai ser difícil.

- Lhe imploro: fiz todo este caminho para ela me levar.

- Veja como ela anda: desmotivada, focinho pelo chão.

- Mas eu queria tanto terminar-me!

Impossível, insistiu o Tempo. E para comprovar, soltou o animal. O bicho se afastou, arrastado e agónico, para o fundo de uma valeta. Ali se enroscou decadente como um pano gasto. O velho se condoeu e perguntou ao bicho:

- O que posso fazer por si?

- Eu só quero beber.

Não era de água a sua sede. Queria palavras. Não dessas de uso e abuso nas palavras tenras como o capim depois da chuva. Essas de reacender crenças. O velho prometeu garimpar entre todos os seus vocabulários e encontrar lá os materiais de reacender o mais perdido fôlego. Urdia, seu secreto plano: iria ao sonho e de lá retiraria uma paixão de palavras.

Na manhã seguinte, foi de encontro à besta moribunda. O bicho estava agora mais hiena que cão. Uma baba amarela lhe escorria pelo focinho. Apenas revirou os olhos quando sentiu o homem se aproximar.

- Trouxe?

E ele lhe entregou o sonho, as palavras, mais seu inebriamento. O animal sugou tudo aquilo com voracidade. Seus olhos eram os de uma criança sorvendo estória antes do sono.

E assim se seguiram durante umas manhãs. Em cada uma, o velho se anichava e confiava seus elixires. De cada vez, o bicho se animava mais um pouco. No final, a Morte se recompôs com tais pujanças que o velho ganhou coragem e lhe apresentou o pedido, seu anseio de que o mundo se lhe fechasse. A Morte escutou o pedido de olhos fechados.

- Amanhã vou cumprir o meu mandato - anunciou ela.

Nessa noite, o velho nem dormiu, posto perante a sua última noite. Sentindo-se derradeiras, passou em revista a sua vida. Nos últimos anos, ele tinha perdido a inteira memória. Mas agora, naquela noite, lhe revieram os momentos de felicidade, toda a sua existência se lhe desfilou. e sentiu saudade, melancolia por não poder revisitar amigos, terras e mulheres. até lhe assaltou a ideia de escapar dali e reganhar aventuras no caminho da vida. Para não ser atacado por mais recordações - com o risco do arrependimento - ele foi ao rio e caminhou ao sabor da corrente. Andar no sentido da água é o modo melhor para nos lavarmos das lembranças.

No dia seguinte, o velho foi à valeta onde encontrou a Morte. Ela estava cansada, respiração ofegante. E disse:

- Já matei.

- Matou? Matou quem?

- Matei o Tempo!

E apontou o corpo desfalecido do homem alto. A hiena, então, estendeu a trela ao velho e lhe ordenou:

- Agora leva-me tu a passear!






(Mia Couto, In "Na berma de nenhuma estrada") 














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