Adriana Falcão Texto da semana

TEXTO DA SEMANA: Vai e vem, de Adriana Falcão

10:56Isabela Lapa






Vai-se a madrugada, vem a manhã.

Vai-se o 1 do 7:01, no relógio digital da mesa da cabeceira, vem o 2, e logo virá o 3, minuto é medida apressada.

Um banho, uma torrada, um café com leite. 

Às 8:30, pontualmente, o homem sem perspectiva nenhuma entra no escritório. Dá bom dia. 

Senta no seu canto. Liga o computador. E dá por iniciado o expediente. 

Várias vezes, inspirado por motivos diversos, se lembra da ex-mulher e das crianças. Promete, como faz todos os dias, trancar a porta do peito para qualquer forma de agonia, mergulha no trabalho, mas o chefe lhe convoca para uma reunião de emergência. As coisas não vão bem. É a crise.

Vai-se a manhã, vem a tarde.

E lá se vão 13, 90 no self service da esquina.

O homem sem perspectiva nenhuma passa no banco. Paga contas. Entra na casa lotérica. Quina, mega sena, raspadinha. (No seu entender, devaneio não tem nada a ver com perspectiva.) Senta no boteco do Gomes. Um expresso. Repara nas pessoas aceleradas, paletós, tailleurs, pastas, papéis. Buzinas de carro. Liga para a filha mais velha. Ela está ocupadíssima no momento, mas promete retornar a ligação. 

Segundo turno. A partir das 14 horas, o movimento no escritório sempre aumenta. Emails. Telefonemas. Decisões. Chatices em geral. Uma após a outra. Ou várias de uma vez só. Depende da sorte. No fim do dia, ao que parece, os minutos têm preguiça de correr. Um café. Uma aspirina. Um relatório. 

Milagrosamente, vai-se a tarde, vem a noite. “Boa noite, bom descanso, até amanhã”, os colegas se despedem. Ele vai para casa, faz um sanduíche com o que encontra na geladeira, abre uma cerveja, liga a televisão. Os canais passam à sua frente, novela, comédia, futebol, notícia. Mais um tiroteio não sei onde. Decide pôr fim aos tiros com um toque no off do controle remoto e se sente meio Deus por causa disso. Pensa que a filha não retornou a ligação e logo expulsa esse pensamento do recinto. O porta-retratos em cima do móvel exibe uma família feliz. Como todas as noites, ele e suas lembranças ficam um tempo por ali, se fazendo companhia. 

O homem sem perspectiva nenhuma já teve muitas perspectivas. 

Já se apaixonou perdidamente, já participou de passeata, já vestiu camisa, já fez juras eternas, já planejou curso no exterior, já sonhou com a casa própria, já almejou promoção, já desejou mudar de emprego, já cogitou ser poeta, já se inscreveu em concurso, já prometeu, (mais de uma vez), levar as crianças à Disney, já quis ter outro filho, já quis ter uma horta, já quis morrer, já tentou reconquistar a ex-mulher, já pretendeu encontrar novos amores, já decidiu ser feliz sozinho, já mudou de idéia, já comprou um violão, já programou férias numa ilha, já cismou que ainda ia ser muito rico, já desistiu de tudo, já desistiu de desistir.

Hoje, faz tudo que é necessário fazer, só não faz planos. Apesar de não ter religião, ele acredita que existe um “aquilo” que não depende dele. Ele não sabe o nome “daquilo”. Nem pretende saber. Não se sente um conformista, nem um derrotado, nem um desiludido, nem um ser destituído de esperança no futuro, muito pelo contrário. Para ele, as perspectivas são infinitas, e ter algumas é como deixar de ter todas as outras. 

Hora de dormir. 

Ele coloca o despertador para as 7, apaga a luz do abajur, e adormece sem esperar nada do dia seguinte.

O homem sem perspectiva nenhuma não é homem de exterminar perspectivas.









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