Texto da semana

TEXTO DA SEMANA: O amor acaba, de Paulo Mendes Campos

11:33Isabela Lapa


O amor acaba. 

Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; 

acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; 

de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; 

na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; 

e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; 

na insônia dos braços luminosos do relógio; 

e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; 

e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; 

às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; 

mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; 

no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; 

na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; 

nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; 

quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; 

na compulsão da simplicidade simplesmente; 

no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; 

no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; 

em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; 

e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir;

em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; 

nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; 

em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; 

no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; 

uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba;

na descontrolada fantasia da libido; 

às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; 

e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; 

e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; 

no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; 

e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; 

na janela que se abre, na janela que se fecha; 

às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; 

às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; 

mas pode acabar com doçura e esperança; 

uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; 

na verdade, o álcool; 

de manhã, de tarde, de noite; 

na floração excessiva da primavera; 

no abuso do verão; 

na dissonância do outono; 

no conforto do inverno; 

em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; 

para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.


*O texto original é escrito sem parágrafos. Colocamos o espaçamento apenas para facilitar a leitura.




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