Crítica Editora Companhia das Letras

Terra Sonâmbula, de Mia Couto

07:30Universo dos Leitores




No cenário de Moçambique durante a guerra, Mia Couto nos apresenta duas histórias – a primeira, narrada em terceira pessoa, conta a trajetória de Tuahir e o garoto Muindinga, que tentam reconstruir as suas vidas e lutam por espaço e sobrevivência em meio à destruição que assola o país. Juntos, eles encontram o diário de Kindzu, o que nos insere na segunda narrativa, em primeira pessoa, constituída pelas lembranças do escritor, que relembra o período de guerra, com todas as incertezas, medos e desejos ocultos que fazem parte do cotidiano de todo um povo. 

Com uma delicadeza ímpar, o escritor consegue demonstrar mais que a destruição da terra. Ele mostra com clareza a destruição causada nas pessoas em razão da violência e da miséria. 

"A guerra é uma cobra que usa os nossos próprios dentes para nos morder. Seu veneno circulava agora em todos os rios da nossa alma. De dia já não saíamos, de noite não sonhávamos. O sonho é o olho da vida. Nós estávamos cegos".





Os contextos inicialmente distintos vão se interligando aos poucos, com isso, somos conduzidos a uma história incrível sobre a luta pela sobrevivência em meio ao caos. O cenário apresentado é de destruição, dor, escassez e muita pobreza. Os personagens são sobreviventes que convivem com a falta de tudo que confere dignidade à existência humana.

"Em terra de misérias, um pequeno nada é olhado com muita inveja". 

Com uma trama inteligente e bem amarrada, uma linguagem diferenciada e quase poética, Mia Couto nos conduz a uma incrível história sobre a vida de um povo destruído pela guerra. 

"Chorais pelos dias de hoje? Pois saibam que os dias que virão serão ainda piores. Foi por isso que fizeram esta guerra, para envenenar o ventre do tempo, para que o presente parisse monstros no lugar das esperanças. Não mais procureis vossos familiares que saíram para outras terras em busca da paz. Mesmo que os reencontreis eles não vos reconhecerão. Vós vos convertêsteis em bichos, sem família, sem nação. Porque esta guerra não foi feita para vos tirar do país mas para tirar o país de dentro de vós”. 





Fome, racismo, pobreza, perda, religião, corrupção, desvalorização da mulher, tradição, morte, família e diversas questões são abordadas ao longo da narrativa, que prende a atenção e encanta pela forma singela com a qual o escritor relata as dores e os medos dos personagens. 

Esses variados temas, somados às colocações incisivas sobre a cultura do povo moçambicano tornam a obra rica e informativa. Não tem como ler sem pensar nas diferenças de cultura e de valores. Por lá eles valorizam os sonhos, consideram as mudanças de tempo e da terra como indícios de acontecimentos, usam a fé como meio de oprimir a sociedade e disfarçar a corrupção, aproveitam do sobrenatural para justificar a pobreza, colocam os homens em posições superiores às das mulheres e veem a morte de uma forma diferenciada e bem polêmica. 

Este é um livro sobre a guerra, o isolamento, a solidão, a busca infinita e uma cultura incrível! Uma obra digna de prêmios e de muito destaque! Mia me emocionou e construiu uma história que conseguiu superar todas as minhas expectativas.




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