Crítica Editora Bertrand Brasil

Verdade Ao Amanhecer, de Ernest Hemingway

00:00Universo dos Leitores

A literatura sempre teve dificuldade de entender o outro. Assim, o outro sempre foi o alvo da literatura: tocar o que não se pode tocar, chegar em um ponto de silêncio – que só a arte tem – em que podemos revelar algo significativo entre nós e o estranho outro, esse hospedeiro que carregamos conosco. A literatura de Hemingway parece perceber o outro até com certa obsessão: quem leu o Velho e o Mar sabe da grande disputa entre este eu e a natureza voraz. Em Verdade ao Amanhecer, Hemingway conta uma história de outros, distantes, mas que ele acha que pode tocar.

Verdade ao Amanhecer é uma espécie de relato biográfico-ficcional de Hemingway no tempo em que passou na África ao lado de sua mulher Mary. O livro conta a história do autor liderando um grupo de viajantes e moradores locais em busca de um leão que deveria ser morto por sua esposa até o dia do nascimento de Jesus, o Natal. Misturando ficção, biografia e reflexões, esta obra, uma das menos conhecidas do autor, funciona como uma coda à obra do autor, dando-nos mais pouco de sua forma absolutamente peculiar de contar as coisas do mundo.

Verdade ao Amanhecer logo de cara nos apresenta a estranheza de um lugar: A África, vista pelos olhos de Hemingway é tal qual descrita nos relatos dos americanos: um lugar selvagem, de grandes forças naturais, de um poder da fé local capaz de ver religiões e religiosos em todo canto. Assim, esta imagem estereotipada, típica do autor – que sempre a desfaz mostrando as próprias fraquezas – é apresentada para, logo em seguida, mostrar sua fragilidade diante daquele mundo. Hemingway tenta a todo custo apreender este outro como num espelho que olha apenas para si:

"Quando tudo é fantástico e você inventa suas mentiras e vive nesse estranho mundo em que tem tudo, então é simplesmente fantástico e às vezes encantador, e eu rio de você. Me sinto acima de tanto absurdo e irrealidade. Por favor, tente me compreender, porque eu também seu irmão."
Se é verdade que a África é um lugar ainda “não-ocidentalizado”, é também verdade que o papel de humanidade em torno da África é latente na obra. Hemingway, ao lado de sua esposa a procura deste leão, se torna, na verdade, o próprio leão do livro, na medida em que os gestos, as ações, o poder que ele detém ali naquele lugar, revelam, na verdade, apenas uma pobreza da dinâmica humana em tomar o mundo pelas mãos, ao mesmo tempo em que nos mostra como a ordem da natureza com suas mudanças diárias é muito mais forte do que somos capazes de suportar. Sobre essa necessidade americana inata de liderar, de mandar, o autor diz:

"Há pessoas que gostam de exercer o mando, e em sua ânsia por assumi-lo impacientam-se com as formalidades para toma-lo de outro. Gosto de exercer o mando, pois o considero a mistura ideal de liberdade e escravidão. Um homem pode sentir-se feliz com sua liberdade, e quando esta se torna muito perigosa, pode refugiar-se no dever."

Verdade ao Amanhecer, de certa forma, revela estas forças que nos dão as pequenas verdades do mundo. Assim, com a linguagem típica do autor podemos acompanhar suas ironias, suas tardes em meio ao álcool, seus relatos sobre autores da época e muito mais. Um livro especial e essencial para amantes da boa literatura. Se é longo é só porque a literatura às vezes não dá conta do mundo.


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