Daniel Keyes Destaque

Flores para Algernon, de Daniel Keyes

06:00Kellen Pavão


Créditos: Kellen Pavão

"Considera-se agora o que lhes acontecerá, naturalmente, se forem libertados de suas cadeias e curados da sua ignorância. Que se liberte um desses prisioneiros, que seja ele obrigado a endireitar-se imediatamente, a voltar o pescoço, a caminhar, a erguer os olhos para a luz: ao fazer todos estes movimentos sofrerá, e o deslumbramento impedi-lo-á de distinguir os abjetos de que antes via as sombras"
O mito da Caverna | Platão

 Eu sou apaixonada por histórias, especialmente aquelas que conseguem ir além do óbvio, do lugar comum. Para minha alegria, Flores para Algernon, foi uma destas raras surpresas, um dos livros mais comoventes e reflexivos que já tive a oportunidade de ler.

O autor Daniel Keyes apresenta a vida de Charlie Gordon, um jovem diagnosticado com uma grave deficiência intelectual e de baixo Q.I. (um conceito hoje datado, mas muito utilizado no passado para revelar o nível de inteligência de uma pessoa). 

Flores Para Algernon possui uma narrativa epistolar, ou seja, somos apresentados à história através dos relatórios escritos por Charlie. Mas não se engane: apesar do seu baixo intelecto e dos erros gramaticais, o que mais chama a atenção nos relatórios iniciais de Charlie é a sua percepção do mundo e suas expectativas de se tornar alguém “melhor”, de acordo com a definição social e científica de inteligência.
Créditos: Kellen Pavão
Charlie tem a pureza de uma criança e a resignação de quem não percebe o impacto de sua condição em suas relações sociais, o que o deixa vulnerável a agressões verbais e humilhações, tristemente não percebidas por ele em virtude de sua limitação intelectual. Mas a vida do protagonista ganha um novo capítulo quando surge para ele a oportunidade de fazer uma cirurgia experimental capaz de reverter seu quadro, um procedimento nunca testado em humanos que o deixa cheio de esperanças de finalmente se tornar inteligente.

O Gimpy gritou com migo porque eu derrubei uma bandeja xeia de paezinhos crus que eu levava pro forno. Esses paezinhos sujarão e ele teve que limpar com um pano antes di botar pra cusinhar. O Gimpy sempre grita comigo quando faço uma coisa poco certa, mas ele gosta bastante de mim porque ele é meu amigo. Nossa se eu ficar intelijente ele vai se surpreender de mais. 

E é neste ponto que o livro ganha contornos cada vez mais dramáticos: a cirurgia é bem-sucedida e Charlie conquista a tão sonhada inteligência, mas a percepção da realidade à sua volta cai como uma bigorna em sua cabeça. Ele percebe como era explorado no trabalho, rompe laços com aqueles que considerava seus amigos e pouco a pouco se torna o humano mais inteligente do mundo, mas também o mais solitário. Sua mente evoluída está muito à frente de todas as outras pessoas, tornando todas as conversas e relações sociais entediantes aos seus olhos.

Além de ter que lidar com a dolorosa percepção de sua vida cheia de discriminação antes da cirurgia, Charlie não desenvolve uma inteligência emocional compatível com seu novo quadro cognitivo, e sua maturidade emocional não progride tão rapidamente quanto sua inteligência. A falta de identificação com o “antigo Charlie” o deixa perdido e sozinho, e ele começa a questionar a própria existência se identificando apenas com o rato Algernon que foi cobaia do mesmo experimento. 

“Estou tão distante de Alice com um Q.I. de 185 quanto estava quando tinha um Q.I. de 70. E, dessa vez, nós dois sabemos.”

Créditos: Kellen Pavão
Como Neo em Matrix, Charlie “optou pela pílula vermelha” e a realidade se mostrou e dolorosamente amarga diante dos seus olhos. Tudo o que ele considerava real era ilusão, assim como a sua frustrada expectativa de se tornar mais feliz após a cirurgia. A partir deste momento acompanhamos sua jornada de autoconhecimento e de luta para tentar se sentir parte da sociedade, um desejo que o acompanha desde os tempos pregressos à cirurgia.

Flores Para Algernon não é uma história fácil de ser lida, apesar da narrativa delicada e envolvente. Violência verbal, preconceito, discriminação, solidão e conflitos existenciais são alguns dos pontos discutidos neste livro incrivelmente complexo, que conta com uma belíssima tradução. Perceber como a realidade pode ser cruel pelos olhos de Charlie me tirou o sono e muitas lágrimas em vários momentos. Uma experiência única e necessária. 


* Este clássico da literatura norte-americana conquistou o prêmio Nebula e inspirou um filme e um musical. 


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