A Desumanização Cosac Naify

A Desumanização, de Valter Hugo Mãe

00:00Universo dos Leitores



“Foram dizer-me que a plantavam. Havia de nascer outra vez, igual a uma semente atirada àquele bocado muito guardado de terra. A morte das crianças é assim, disse a minha mãe. O meu pai, revoltado, achava que teria sido melhor haverem-na deitado à boca de deus. Quando começou a chover, as nossas pessoas arredadas para cada lado, ainda vi como ficou ali sozinho. Pensei que escavaria tudo de novo com as próprias mãos e andaria montanha a cima até ao fosso medonho, carregando o corpo desligado da minha irmã. Éramos gêmeas. Crianças espelho. Tudo em meu redor se dividiu pela metade com a morte.”

Halla é uma jovem de 11 anos que vive com os pais em uma pequena aldeia na Islândia, e que mesmo tão nova já conhece a dor e o quanto ela pode mudar o nosso destino e as nossas perspectivas. Desde o falecimento de Sigridur, sua irmã gêmea, a menina começa a se sentir meio morta e os seus dias se tornam vazios, solitários, angustiantes e dolorosos. 



Na companhia da mãe, que vive amargurada e comumente lhe agride com gestos e palavras cruéis, Halla se sente culpada pela morte da irmã e acumula um remorso doloroso por entender que ela sim deveria ter morrido. Na companhia do pai, por sua vez, ela encontra um pouco de conforto, já que ele lhe ensina o poder das palavras e dos livros, fazendo com que ela encontre um lugar seguro para esquecer, pelo menos por um tempo, a realidade que lhe assombra. 

Mas a sua vida só ganha novos contornos e pequenos resquícios de esperança e prazer quando ela começa a se envolver com Einar, o único jovem solteiro da aldeia. Com vários receios no início, já que a sua irmã sentia repulsa pelo rapaz, aos poucos um sentimento começa a surgir e juntos eles se tornam mais fortes, mais seguros e mais maduros.


Por tudo que eu disse até aqui, parece que essa é um livro sobre o luto. Mas a verdade é que ele é muito mais que isso. A narrativa, feita em primeira pessoa, com um tom poético, lírico e permeado de metáforas, fala sobre os recomeços, sobre as dificuldades de nos encontramos com a nossa essência e de descobrirmos quem somos e como vamos encarar o mundo.

Esse é um livro que mergulha no íntimo de uma personagem que mesmo tão nova precisa enfrentar a vida e encontrar o seu lugar no mundo, já que ser apenas metade nunca será suficiente para que ela tenha paz, conforto, segurança e, principalmente, humanidade.

Falando em humanidade, preciso dizer que a escolha do título não poderia ter sido melhor e talvez a sua essência esteja em uma das passagens que aparecem logo nas primeiras páginas da história:

“O inferno não são os outros, pequena Halla. Eles são o paraíso, porque um homem sozinho é apenas um animal. A humanidade começa nos que te rodeiam, e não exatamente em ti. Ser-se a pessoa implica a tua mãe, as nossas pessoas, um desconhecido ou a sua expectativa. Sem ninguém no presente nem no futuro, o indivíduo pensa tão sem razão quanto pensam os peixes. Dura pelo engenho que tiver e parece como um atributo indiferenciado do planeta. Parece como uma coisa qualquer”.


Valter Hugo Mãe é um exímio contador de histórias. Descobri isso quando li O Filho de Mil Homens e confirmei agora, com A Desumanização. Ele descreve bem os cenários e constrói personagens sólidos, cativantes, intensos, e que assim como nós são repletos de imperfeições, de medos e receios. Personagens que talvez não percebam, mas que no fundo das suas almas guardam resquícios de esperança e cultivam uma sede pela mudança e pela possibilidade de redescobrir a vida.

Uma declaração de amor aos livros:
Como eu comentei no início desse post, em meio à toda a dor que Halla sentia e via os seus pais sentirem, ela teve a oportunidade de descobrir o prazer pelos livros e pelas palavras. O seu pai, um poeta, lhe ensinou a função da poesia e a mágica das palavras, lição que ela aprendeu muito bem e que contribuiu para a sua trajetória de autoconhecimento.

O escritor utilizou muito bem esse ponto e ao longo da narrativa demonstrou o poder da leitura e o quanto ela pode nos mostrar quem somos, nos revelar o mundo e, principalmente, nos tornar ainda mais humanos. O que o Valter fez, aos meus olhos, foi transcrever, por meio de Halla, o seu amor pela literatura e pelas palavras. Valter fez, na verdade, diversas declarações de amor aos livros.

Confiram algumas passagens:

"O meu pai desentristeceu-me. Prometeu que leríamos um livro. Os livros eram ladrões. Roubavam-nos do que nos acontecia. Mas também eram generosos. Ofereciam-nos o que não nos acontecia. (...) Punha a cabeça de encontro ao livro como se para ler fosse necessário mergulhar. Servia de ilusão. O melhor era poder fazê-lo com meu pai. Andar iludida com ele."


"Devia ser a poesia do meu pai que me mimava. Os livros. Eram os livros. Diziam-me coisas bonitas e eu sentia que a beleza passava a ser um direito." 


"A poesia é a linguagem segundo a qual deus escreveu o mundo. Disse o meu pai. Nós não somos mais do que a carne do poema. Terrível ou belo, o poema pensa em nós como palavras ensanguentadas. Somos palavras muito específicas, com a tenra capacidade da tragédia. A tragédia, para o poema, é apenas uma possibilidade. Como um humor momentâneo. Eu perguntei: posso chamar a vida de poema. Ele respondeu: podes chamar a vida de poema. Ou podes chamar de normalidade. A vida é a normalidade e deus é a normalidade. O poema é normal.

Onde há palavra, há deus. Onde nasce a palavra, nasce deus. Todos os outros lugares são ermos sem dignidade."

"(...) Não ler, pensei, era como fechar os olhos, fechar os ouvidos, perder sentidos. As pessoas que não liam não tinham sentidos. Andavam como sem ver, sem ouvir, sem falar. Não sabiam sequer o sabor das batatas. Só os livros explicavam tudo. As pessoas que não leem apagam-se do mapa de deus. Eu disse."

"(...) Os melhores livros inauguravam expressões. Diziam-nas pela primeira vez como se as nascessem. Ideias que nasciam para caberem nos lugares obscuros da nossa existência. Andávamos como pessoas com luzes acesas dentro. As palavras como lâmpada na boca. Iluminando tudo no interior da cabeça. Como o cristal natural do Einar, que o deixava mágico. As palavras deixavam-nos mágicos. Eram os livros que traziam o feitiço e punham tudo a ser outra coisa. A boca elétrica, dizia alto. Eu e o Einar estávamos escutando o mundo."
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*Postado por Isabela Lapa


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