A Máquina de Fazer Espanhóis Cosac Naify

A Máquina de Fazer Espanhóis, de Valter Hugo Mãe

00:00Universo dos Leitores


"com a morte, também o amor devia acabar. acto contínuo, o nosso coração devia esvaziar-se de qualquer sentimento que até ali nutrira pela pessoa que deixou de existir. pensamos, existe ainda, está dentro de nós, ilusão que criamos para que se torne todavia mais humilhante a perda e para que nos abata de uma vez por todas com piedade. e não é compreensível que assim aconteça. com a morte, tudo o que respeita a quem morreu devia ser erradicado, para que aos vivos o fardo não se torne desumano. esse é o limite, a desumanidade de se perder quem não se pode perder. foi como se me dissessem, senhor silva, vamos levar-lhe os braços e as pernas, vamos levar-lhe os olhos e perderá a voz, talvez deixemos os pulmões, mas teremos de levar o coração, e lamentamos muito, mas não lhe será permitida qualquer felicidade de agora em diante. caí sobre a cama e julguei que fui caindo por horas, rostos e mais rostos colocando-se diante de mim, e eu por ali abaixo, caindo, sem saber de nada. quando, por fim, me levantei, estava a anos-luz do homem que reconheceria, e aprender a sobreviver aos dias foi como aceitar morrer devagar, violentamente devagar, à revelia de tudo quanto me pareceria menos cruel. e a natureza, se do meu coração não se esvaziou o amor pela laura, estaria numa aniquilação imediata para mim também, poupando-me à miséria de ver o sol que arde sem respeito por qualquer tragédia."

Ler A Máquina de Fazer Espanhóis, do escritor português Valter Hugo Mãe, é mergulhar no universo do Senhor Silva, um senhor que, após 46 anos vivendo ao lado de sua amada, passa pela terrível dor de perdê-la e tem que reencontrar o sentido da vida em um asilo, o Feliz Idade. Ele decide, então, envolver-se em sua casmurrice e se calar diante de todos, com a intenção de demonstrar ao mundo a dor de sua perda.

A vida, porém, continua, e por meio dos pequenos gestos de seu cuidador Américo e da atenção dispensada pelos outros moradores do asilo, aos poucos, nosso Silva vai entendendo que todos carregam suas dores, mas que a vida não para de surpreender e mesmo depois de velhos, ainda estamos em eterno aprendizado. Assim, começa a estabelecer laços de amizades com o Senhor Pereira, o Silva da Europa e o Esteves Sem Metafísica, do poema Tabacaria de Fernando Pessoa. 
Relatando as experiências do Senhor Silva, a sua incompreensão diante do que entende ser o seu abandono por parte de seus filhos, e as marotices que mesmo os velhos aprontam, o livro se revela envolvente e emocionante, se tornando grandioso mesmo perante sua escrita, toda em letras minúsculas. Por trás de cada uma dessas pessoas, que muitas vezes são abandonas em depósitos de idosos, há relatos, histórias e vivências. Todos, no Feliz Idade, foram marcados pelos anos da ditadura Portuguesa sob o domínio de Salazar, seja pela submissão, seja pela rebelde resistência calada, mas viva, no coração de cada um que clama por liberdade. 

"muito do que não existe é do mais importante da vida, não despreza nada, senhor silva, agarre-se a uma fantasia se for boa, que a realidade é benfeita desses momentos mais espertos de lhe fugirmos de vez em quando."

A revolta maior que marca nosso personagem é a sua incompreensão diante de Deus, que a despeito da vida correta levada por ele e sua amada esposa, levou o seu primeiro filho. Senhor Silva decide não crer mais em um Deus que permite que pessoas amadas morram. Mas essa revolta de fé não o impede de amar cada vez mais aquela mulher, a ponto perder todo o sentido de sua vida quando ela falece. E a experiência da perda, que parece culminar com a morte de Laura, ganha novos significados com a proximidade da morte que sempre ronda o asilo.

Descobrir um autor como Valter Hugo Mãe é deparar-se com escritos singulares. O texto, todo escrito em letra minúscula, acompanha a narração do personagem principal, em primeira pessoa. Curiosamente, dois capítulos do livro, o quinto e o décimo sétimo, são grafados em caixa normal, aparecendo letras maiúsculas no início de parágrafos. O vocabulário é mantido na versão original, aparecendo palavras e expressões comuns em Portugal, mas que podem soar estranhas ao brasileiro, como por exemplo o termo “cu”, que em Portugal e comumente utilizado sem nenhuma conotação de palavrão.


"depois confessei-lhe, precisava deste resto de solidão para aprender sobre este resto de companhia. este resto de vida, américo, que eu julguei já ser um excesso, uma aberração, deu-me estes amigos. e eu que nunca percebi a amizade, nunca esperei nada da solidariedade, apenas da contingência da coabitação, um certo ir obedecendo, ser carneiro. Eu precisava deste resto de solidão para aprender sobre este resto de amizade. hoje percebo que tenho pena da minha laura por não ter sido ela a sobreviver-me e a encontrar nas suas dores caminhos quase insondáveis para novas realidades, para os outros. os outros, américo, justificam suficientemente a vida, e eu nunca o diria. esgotei sempre tudo na laura e nos miúdos. esgotei tudo demasiado perto de mim, e poderia ter ido mais longe."

Mais do que relatar a história de um senhor português, Valter Hugo Mãe capta a identidade de um povo, seus costumes, sua história e o amor pelo seu país. Não se trata de um Senhor Silva, mas de muitos Silvas, Pereiras e tantos outros portugueses, que em comum compartilham uma alma lírica, às vezes alegre, na maioria das vezes melancólica. Não é um povo constituído meramente por pessoas nascidas em um mesmo país, mas por pessoas como que arranjadas em versos em uma grande poesia.



Fernando Ruiz Rosario. Piracicabano, graduado em Filosofia pela UFSCar e mestrando na mesma área na UFMG. Gasta seu tempo livre com fotos, livros, séries, filmes, viagens e longas discussões.





Gostou? Compre aqui: Saraiva ou Cultura.


You Might Also Like

0 comentários

Obrigada por participar do nosso Universo! Seja sempre muito bem vindo...

Acompanhe nosso Twitter

Formulário de contato