Alfaguara Crítica

Feliz ano velho, de Marcelo Rubens Paiva

00:00Angélica Pina

Marcelo é um jovem de 20 anos de classe média alta, mora em Campinas com alguns amigos, é estudante de Engenharia agrícola na Unicamp, adora curtir a vida, fumar maconha, tocar violão e compor músicas cheias de ironia e críticas sociais. 

Perto do Natal de 1979, já meio bêbado, em uma brincadeira ele pula em um lago imitando a pose do Tio Patinhas. O problema é que o lago era raso e a consequência foi uma fratura em sua quinta vértebra que resultou em uma ida ao hospital mexendo apenas do pescoço para cima.

“Saíram todos e lá estava eu, deitado naquela cama sem mexer nada além do pescoço, ao lado de uma velha gorda morta. Foi aí que eu descobri o que é uma UTI. É uma espécie de antessala do céu ou do inferno. Se você entrou nela, ou morre, ou sai com profundas lesões. Eu não tinha tanta certeza se eu preferia sair ou passar pro outro lado.”

A partir daí, Marcelo passa a contar sua experiência em uma UTI, as visitas e o apoio de sua família e os amigos, os vários exames e cirurgias, a falta de um prognóstico que deixasse claro qual seria sua real condição, a convivência com médicos, enfermeiros e outros pacientes, o arrependimento e a vontade de voltar no tempo para alguns segundos antes do estúpido mergulho no lago sem profundidade.

“Não tinha o mínimo sentido. As lágrimas rolaram, chorei sozinho, ninguém poderia imaginar o que eu estava passando. Nada fazia sentido. Todos sofriam comigo, me davam força, me ajudavam, mas era eu que estava ali deitado, e era eu que estava desejando minha própria morte. Mas nem disso eu era capaz, não havia meio de largar aquela situação. Tinha que sofrer, tinha que estar só, tão só que até meu corpo me abandonara. Comigo só estavam um par de olhos, nariz, ouvido e boca.”
Essa é a história real de como Marcelo Rubens Paiva ficou paraplégico, contada por ele mesmo de forma sincera, sem eufemismos, sem vergonha de assumir que em muitos momentos desejou morrer para não ter que lidar com sua nova condição. Com uma linguagem coloquial, inclusive com muitas gírias e palavrões, o autor constrói um texto de leitura fácil, mas nem por isso “pobre”.

Enquanto Marcelo narra sua rotina pós-acidente, vai contando também casos que viveu na infância e adolescência, inclusive o seu primeiro grande trauma, aos 11 anos: o desaparecimento do pai, o político Rubens Paiva. A história fez parte dos noticiários durante muitos anos e houve muita especulação sobre os motivos de seu sumiço e a possível morte do patriarca da família de cinco filhos, mas nunca teve uma conclusão esclarecedora. Ao lembrar de seu pai, Marcelo faz críticas à Ditadura e conta um pouco sobre o cenário político da época.

Feliz ano velho foi publicado em 1982 e é considerado um clássico da Literatura brasileira. A obra traz um retrato da juventude daquela época, contando não apenas dramas e tragédias.O autor também conta de maneira bastante descontraída sua vontade de ser um músico reconhecido e as aventuras de participar de festivais e até aparecer na televisão tocando e cantando com seus parceiros de banda, além dos shows fracassados na Universidade. Ele conta também sem pudores sobre suas experiências sexuais e a quantidade de mulheres que fez parte de sua vida, tanto antes quando após o acidente.

 “Falando tanto em bumbum, o Amaral trouxe uma revista de mulher pelada. No pôster, tinha uma loira deitada numa cama com o bumbum pra fora. Não tivemos dúvidas, o cara colou o pôster bem em cima da porta. Não foi pra me excitar, muito menos pra chocar. Simplesmente era uma maneira de deixar aquele quarto de hospital mais leve. Os médicos olhavam e achavam graça. As minhas tias não falavam nada, mas quem gostou mesmo foram os meus enfermeiros, o Chico e o Santista.”
A narrativa de Marcelo Rubens Paiva faz com que o leitor sofra com ele e se emocione com as dificuldades que ele encara desde que se acidenta, mas o autor não faz questão de posar de bom moço, deixando claro em muitos momentos o quanto ele foi um jovem egocêntrico, inconsequente e até mesmo arrogante. Além disso, por mais que em alguns momentos ele lamente e reclame, chore e pense em desistir de viver, Marcelo não se coloca como vítima o tempo todo e até mesmo zomba de certas situações que precisa enfrentar em sua nova condição e estilo de vida.

É fácil se envolver com a história e terminar o livro em poucas horas. Leitura recomendada para qualquer pessoa, de qualquer idade!

“Eu não aguento mais, é muito sofrimento prum carinha de vinte anos que nunca fez mal a ninguém. Ó deus, como você foi injusto, cara. Lamentável. Tanta gente babaca por aí, e justo eu você escolhe... Tanto assassino, tanto ladrão, tanta gente que não usa o corpo pra nada, que não sabe tocar um Villa-Lobos, não sabe catar no gol, não se interessa por agricultura, não sabe fazer amor. É, você me preparou uma surpresa desagradável. Tudo aquilo que eu tinha sonhado, meus planos pro futuro, desaguou numa simples queda mal calculada.”
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