Fernando Ruiz Livros

Ruptura: a crise da democracia liberal, de Manuel Castells

10:00Fernando Ruiz Rosario


Manuel Castells já é um clássico da Sociologia quando o assunto é a nova configuração da sociedade em rede com o advento da internet e novas tecnologias da comunicação. Neste novo livro, Ruptura, publicado no ano de 2017, o autor espanhol avalia a situação da democracia, com enfoque em seu país, mas com análises que se estendem a vários países, incluindo o Brasil.

Sopram ventos malignos no planeta azul. Nossas vidas titubeiam no turbilhão de múltiplas crises. (...) Existe, porém, uma crise ainda mais profunda, que tem consequências devastadoras sobre a (in)capacidade de lidar com as múltiplas crises que envenenam nossas vidas: a ruptura da relação entre governantes e governados.

Em um primeiro momento, o autor trata da crise da representatividade. O lema "Não nos representam" se tornou um mantra, utilizado por cidadãos de diversos países como a Síria, Egito, Espanha, Brasil e  Estados Unidos. A representação política, associada a partidos políticos, está no alvo de manifestações, onde indivíduos não encontram nas pautas do debate público a manifestação de seus anseios. A erosão da confiança nas estruturas políticas faz surgir o confronto entre a democracia liberal que vivenciamos, onde há uma separação entre os poderes econômicos e políticos, e o ideal de democracia.

A essa crise de representação de interesses se une uma crise identitária como resultante da globalização. Quanto menos controle as pessoas têm sobre o mercado e sobre seu Estado, mais se recolhem numa identidade própria que não possa ser dissolvida pela vertigem dos fluxos globais.


A explicação para essa crise, no entanto, não está na ação de indivíduos, antes, é consequência da utilização de certos recursos no jogo pelo poder. O medo, uma das mais fortes emoções humanas, se tornou um dos principais instrumentos nessa briga, pelo menos desde os atentados de 11 de setembro de 2001. Tal fato leva à retomada de um discurso em prol das sociedades locais em detrimento da onda de globalização até então vigente, gerando tensões entre os visionários de uma sociedade global e aqueles que pretendem manter grupos locais. Tais tensões, associadas à utilização das mídias, em especial as redes sociais, que explicam a escalada de poder de pessoas como Trump nos Estados Unidas, e de outros políticos conservadores no resto do mundo.

E assim é que a democracia liberal, já debilitada por sua própria prática, vai sendo solapada pela negação de seus princípios, forçada pelo assalto do terrorismo.

O que explica a vitória de Trump, diz Castells, explica também o porquê da crise da democracia liberal. Foi, em grande parte, um movimento identitário, e, por mais disfuncional que um governo como este possa parecer, não deixa de ser replicado em outros lugares, como o Brexit, na Inglaterra e Europa, a eleição de Macron na França e a crise política na Espanha que levou ao fim do bipartidarismo naquele país.

Ao poder da Rede opõe-se o poder da identidade. Entre as duas tendências, o Estado-nação, construído durante a Idade Moderna, entra em crise por sua tensão interna entre ser nodo de redes globais, nas quais se decide o destino de seus povos, e representar seus cidadãos, que não se resignam a deixar suas raízes históricas, geográficas e culturais nem a perder o controle sobre o próprio trabalho.

Uma curiosidade sobre o livro, sendo uma obra de nossos tempos e também uma produção científica, é a disponibilização no site da editora de material adicional, vários gráficos e tabelas, que serviram de base para o livro.

Dada nossa experiência histórica, aprender a viver no caos talvez não seja tão nocivo quanto conformar-se à disciplina de uma ordem.

Uma das características de obras como essa é a de ressaltar como a Sociologia tem capacidade de explicar certas tendências sociais, a despeito das ações de cada indivíduo. O fenômeno de esfacelamento de nossa frágil democracia não é fato isolado no mundo, e segue a tendência de outras nações. Mesmo com toda a desconfiança lançada contra as ciências em geral, mas especificamente contra as sociais, o poder de explicar o que cá se passa é de uma força perturbadora, inquietante e fascinante. Não será, assim, a simples negação da ciência que fará desaparecer obras como essa. Excelente e rápida leitura, recomendo!

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