Lançada em 1988 e concluída em 1996, Sandman foi uma das melhores séries de quadrinhos já produzidas. Muito premiada durante sua publicação, o prestígio dessa obra só fez aumentar após seu encerramento, projetando internacionalmente o nome de seu criador, o roteirista inglês Neil Gaiman. Lançada no Brasil inicialmente pela editora Globo, a saga do Mestre dos Sonhos ganhou uma luxuosa reedição pela Conrad, concluída em 2008 com Sandman: Despertar (capa dura e 200 páginas em formato estendido, incluindo várias ilustrações produzidas por Dave Mckean, uma seção de auto-retratos dos autores envolvidos e outra com notas informativas).
Reunindo as edições 70 a 75 da revista original, o último volume de Sandman é uma história sobre partidas e despedidas, sobre o “trabalho de luto” por amigos e amores que se vão, e também uma sábia reflexão sobre o sentido de nossas existências. Com a morte do Sandman Morpheus no volume anterior, é hora de todos prestarem suas homenagens. Ao mesmo tempo, seguindo a tradição inglesa de “o rei está morto; vida longa ao rei”, é também a hora de reconhecer o novo monarca do Sonhar, o Sandman Daniel. E é exatamente em torno disso que giram as três primeiras histórias do livro, ilustradas por Michael Zulli, nas quais somos testemunhas dos funerais de Morpheus.
Com a presença de soberanos de terras imaginárias, deuses das mitologias antigas, personagens saídos de histórias e também de pessoas comuns, os ritos fúnebres do Mestre dos Sonhos tiveram a devida “pompa e circunstância”. Compareceram também os membros de sua família, além de poucos e verdadeiros amigos, de antigas namoradas e amantes. Podemos, assim, dizer que Morpheus teve um funeral invejável, não pela “pompa e circunstância”, mas pelo fato de ter sido amado e, ao final, compreendido. E enquanto nos narrava essa história, Gaiman despedia-se do personagem que o consagrou, falando-nos profundamente sobre perda e a necessidade de se seguir em frente.
Já o quarto capítulo trata da importância de prestarmos contas de nossos atos e escolhas. E não haveria personagem mais adequado para este capítulo do que Robert Gadling, o homem que tem a escolha de jamais morrer e que a cada cem anos encontrava-se com Morpheus para beber e conversar. Num passeio com sua namorada por um parque temático “medieval”, o imortal inglês acaba mergulhando nas lembranças de um passado que preferia esquecer e também recebendo a visita de uma querida irmã de Sandman. Além de contar uma história com dois de seus personagens favoritos, Gaiman utiliza “Luto Dominical” para falar do vergonhoso envolvimento inglês no tráfico de escravos africanos.
As páginas de Zulli para os quatro primeiros capítulos do livro representam bem o clima de luto. Suas imagens sombrias e pesadas evidenciam o trabalho minimalista de um desenhista que, se não era um talento nato, conseguiu com persistência estabelecer um estilo próprio, de beleza peculiar. Essa impressão é o oposto da que temos com o quinto capítulo de Sandman: Despertar, ilustrado por Jon J. Muth. Um virtuose da ilustração, Muth transpõe para o papel imagens quase etéreas, que imitam a leveza das antigas ilustrações e caligrafia chinesas, ao mesmo tempo em que traduzem o clima onírico de um roteiro que narra os encontros de um velho sábio com as duas versões de Sandman.
Por fim vem “A Tempestade”, capítulo no qual o Mestre dos Sonhos se encontra pela última vez com William Shakespeare. O dramaturgo inglês já havia aparecido na HQ “Homens de Boa Fortuna”, na qual faz um acordo com o Rei dos Sonhos, e também em “Sonho de uma noite de verão”, na qual entrega a primeira de duas peças que escreveria para Morpheus. Mostrando um Shakespeare envelhecido, cansado e melancólico, esse capítulo final mistura elementos da vida do escritor, a trechos de sua última peça. Mais uma homenagem de Gaiman a um de seus autores favoritos, a história desenhada por Charles Vess é um fechamento à altura para uma grande série de quadrinhos.
Uma HQ bem elaborada, o capítulo final de Sandman trata também de como as escolhas e suas consequências influenciam nossas vidas e as das pessoas à volta. Sem ter o valor de seu trabalho reconhecido pela mulher e sendo cobrado por sua filha por não ter sido um pai presente, Shakespeare se pergunta “se valeu a pena” viver pela arte. Poderíamos responder que “sim”, a esse autor de obras que continuam relevantes quase quatrocentos anos após sua morte. Ainda assim, esse é um questionamento que deve rondar os pensamentos de Gaiman e de todos que dedicam a vida à criação artística, muitas vezes deixando de lado o que outras pessoas chamam de “felicidade”.
Prova de que as HQs podem se igualar às melhores criações literárias de nosso tempo, esse último volume de Sandman não me agradou tanto quando o li pela primeira vez. Foi preciso que alguns anos se passassem e que eu amadurecesse para poder apreciar a beleza e compreender a profundidade dessa história em quadrinhos. Ao acabar de ler Sandman: Despertar, fecho as páginas desse belo livro com aquela boa sensação que a verdadeira arte pode nos dar: a de que outras pessoas também sentem o que sentimos e de que, no fim, não estamos sós.
Wellington Srbek nasceu em Belo Horizonte em 1974. É doutor em Educação e graduado em História pela UFMG, autor e editor de histórias em quadrinhos premiado nacionalmente. Profissional com vinte anos de experiência na criação e edição de revistas e livros, textos informativos e literários. É autor de trabalhos consagrados como o álbum Estórias Gerais e a série Solar, bem como de HQs infanto-juvenis e adaptações literárias.
Resenha originalmente publicada no blog Mais Quadrinhos.
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