A mulher mais linda da cidade Charles Bukowski

Especial Charles Bukowski: A mulher mais linda da cidade e outros contos

23:00Universo dos Leitores

Não deve ter sido fácil ser um cidadão estado unidense após a Segunda Guerra Mundial. Por um lado, havia toda pressão de maior país do mundo, de potência mundial, onde o sonho americano mais que uma possibilidade era quase uma obrigação a todo cidadão e, por outro, havia uma semi-consciência pesada pelas atrocidades cometidas nessa guerra, principalmente após os ataques com a bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki. Em Bukowski, se pode ver uma completa tentativa de apagamento de qualquer marca dessas duas oposições: tanto do americano belo, bom e bem sucedido, quando daquele que se vê margeado por uma espécie de culpa. A palavra para Bukowski é um vírus, uma violência que ele evita até o fim, mas que escapa entre suas orgias e bebedeiras.

A Mulher Mais Bela da Cidade e Outros Contos (2012), de Charles Bukowski, chamava-se, em inglês, na primeira edição, Erections, Ejaculations, Exhibitions, and General Tales of Ordinary Madness (Ereções, Ejaculações, Exibicionismos e Fabulário Gerral do Delírio Cotidiano). Já na segunda edição da obra, há uma alteração do título para apenas Fabulário Geral do Delírio Cotidiano, cujo nome também foi Crônicas de um Amor Louco. A Mulher Mais Bela (…), se tornou apenas um dos nomes dessa coleção de contos. O que destaco é que essa alteração se dá, obviamente, na tentativa de domesticação do ímpeto do autor para que ele se torne mais, digamos, publicável, vendável que, esmiuçando significa: mais público, mais dinheiro. A questão aqui, no entanto, é outra e esse é apenas um aspecto meramente editorial.

Pode-se observar em A Mulher Mais Bela da Cidade e Outros Contos uma trajetória, de certa forma, comum às demais obras do autor como uma narrativa essencialmente biográfica com seu alter egoHenry Chinaski presente em algumas histórias e os temas recorrentes como bebidas, sexo, noites mal dormidas, ressacas, vômitos e uma vida completamente desregrada, inapta para qualquer gesto que um americano chamaria de “civilizado.”

No entanto, percebo de interessante na coletânea o fato de que, logo no primeiro conto, A Mulher Mais Linda da Cidade, essa perspectiva, que se poderia dizer comum e estável do estilo do autor, é parcialmente alterada. O conto trata de uma linda moça chamada Cass que tem, como ele, uma vida sem regras, sempre em bares com bebidas, drogas e homens. Cass, segundo suas irmãs, desperdiça sua beleza por “se dar” demais aos prazeres. Entretanto, a menina, dentro da obra de Bukowski, é uma das poucas tratadas como uma espécie de ser que vale a pena estar perto. Cass prefere os homens feios, os desvalidos e, assim como Bukowski, aproxima a beleza com uma espécie de frouxidão de espírito e caráter. Ambos – ele pela feiura, ela por aderir aos feios – veem na vida do submundo uma espécie de bem, ao invés de algo “bom”, dentro da lógica produtiva capitalista do sonho americano. Acontece que esse alter ego, por ser belo, precisa de alguma maneira punir sua própria beleza, purga-la de si e retira-la à força. Para a isso, a moça reiteradamente se causa estragos, como uma cicatriz na face que, por ser estranha, resulta apenas em mais beleza. E aí que se dá uma derrocada e ela, como Bukowski, precisa se apagar…

Contudo, não se pode dizer que Charles Bukowski, ou Henry Chinaski, fracassem. Quem fracassa é o mundo, é todo aquele sistema e o velho Buk está certo ao permanecer, como ele mesmo diz, sempre duas doses acima.

Em A Mulher Mais Linda da Cidade há ainda uma espécie de metafísica que o próprio Bukowski despreza, mas, em alguns momentos, acaba por escapar pelas entrelinhas narrativas. Nos demais contos, mais próximos das conhecidas obras do autor, podem servir de base para algumas reflexões, principalmente dentro da ideia exposta de que Charles tenta, via escrita, se apagar como ser, como homem civilizado americano.

Em Kid Foguete no Matadouro, há uma intensa crítica à sociedade, ao se observar o típico americano ideal como um ser patético, visto pela lente cética e cínica do autor.

Na América, a gente tem que ser vitorioso, não há escapatória, e é preciso aprender a lutar por ninharias, sem discutir, e de mais a mais, caso deixasse cair o novilho, era bem capaz de ter que levantá-lo sozinho.

O que é mais interessante nessa visão de Bukowski é que ele coloca todo o cenário do sucesso como uma exata reprodução dos pátios dos recreios das escolas, ou seja, os americanos seriam, para ele, uma espécie de seres imaturos, mimados pelo capital, pela máquina e levados ao trabalho para conquistar territórios como na escola, como na faculdade, como nos campos de futebol americano. Ao contrário disso tudo, ele preferia o azar: as corridas de cavalo e as derrotas constantes. Para ele, o trabalho é sempre uma repetição de:

mais um

só mais um

aí eu

paro.

Fodam-se.

Já o estado é representado como uma máquina insensata, que grita. Os mais poderosos, sejam eles policiais, patrões ou membros do exército só sabem berrar palavrões e dar ordens. Eles jamais são colocados como donos de qualquer subjetividade. Todos, sem exceção, têm suas falas retratadas com o recurso do caps lock. Para se ter uma ideia, numa folheada podemos encontrar frases como: “LEVANTA ESSE RABO MORTO DAÍ!” “VOU ACABAR COM TEU COURO, CARA!” “CHUPADOR DE PIROCA!” Esse recurso, me parece, dá um caráter oral à escrita do autor, mas também expõe uma relação física, um gesto específico que Bukowski faz ao se aproximar da máquina ao escrever.

O que fica latente, no decorrer da leitura, é um gradual “desencantamento”. Enquanto que no primeiro conto poderia haver ainda alguma beleza, ao fim, em Você Aconselharia Alguém a Ser Escritor? a única coisa que se pode ler é:

A paisagem era bonita. Claro. Pinheiros e mais pinheiros, com lagos, e mais pinheiros. Ar puro. Sem trânsito. Morri de tédio. Aquela beleza toda não me dizia nada. Não sou um cara muito simpático, pensei. Eis aí a vida como deveria ser e me sinto como se estivesse na prisão.


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