História em Quadrinhos HQ

Entes Queridos, um dos melhores volumes de Sandman.

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Sandman foi a melhor série dos quadrinhos norte-americanos nos anos 90. Seu criador, o roteirista inglês Neil Gaiman, afirmou em diversas ocasiões ter se surpreendido com o sucesso de uma revista que ele imaginava durar apenas vinte números. O fato é que o Mestre dos Sonhos conquistou uma legião de fãs, acumulando prêmios e reedições ao longo das últimas décadas. Um bom exemplo da alta qualidade da série é Sandman: Entes Queridos, o mais extenso e um de seus melhores volumes, lançado no Brasil em edição de luxo pela Conrad em 2008.

A HQ que abre a edição é “O Castelo”, história curta em que Gaiman nos convida a um passeio pela morada do Rei dos Sonhos, onde encontramos alguns de seus principais auxiliares. Produzido em parceria com o eficiente Kevin Nowlan e publicado originalmente na revista Vertigo Jam, esse pequeno conto acaba sendo uma introdução bastante adequada para Entes Queridos. Lançado nos Estados Unidos entre 1993 e 1995, The Kindly Ones foi o clímax dramático da série, com sua trama inspirada nas tragédias gregas e fazendo uma espécie de revisita aos demais “arcos de histórias” (termo pelo qual os volumes de Sandman ficaram conhecidos).

Trazendo o primeiro dos treze capítulos da história, The Sandman n°57 foi bastante aguardada pelos leitores, chegando com frisos dourados na capa, um roteiro excelente, desenhos, cores e letras perfeitos (diga-se de passagem, essa talvez tenha sido a revista que mais gostei de ler nos anos 90). Gaiman e seus colaboradores iniciavam ali uma jornada repleta de mitologia clássica, povoada de personagens carismáticos e marcada por diálogos simplesmente precisos. E se os leitores na década de 1990 tiveram que esperar mais de um ano para ler a conclusão dessa verdadeira “saga”, os de hoje têm o benefício de poderem conhecer tudo de uma só vez.

Sandman: Entes Queridos é o que se pode chamar (copiando o título do livro de Gabriel García Márques) de a “crônica de uma morte anunciada”. Basta lembrar que no volume anterior, Fim dos Mundos, os leitores já haviam presenciado o que parecia ser o cortejo fúnebre do Mestre dos Sonhos. E se Entes Queridos é uma “tragédia”, nada mais apropriado do que apresentar uma história da qual o público já saiba o fim (não deixando por isso de se envolver, emocionar e aprender com o que presencia pelo caminho). Sim, Morpheus morre no último capítulo, cumprindo exemplarmente um “destino trágico”, que é aquele no qual, por mais que atue buscando o contrário, o herói acaba contribuindo para sua trágica sina (exemplo: por mais que tente fugir, Édipo acaba matando seu pai e se deitando com sua mãe).

As primeiras páginas de Entes Queridos servem como um prólogo, no qual presenciamos um chá de fim de tarde na casa das três Moiras (entidades irmãs responsáveis por tecer os destinos dos homens e dos deuses, também conhecidas como as Parcas). Escritor afeito a metáforas, Gaiman não perde a oportunidade de iniciar aí várias referências ao próprio ato de contar histórias (com isso, o primeiro quadro dos capítulos é uma metáfora visual para o “fio da história”, ora na forma de um novelo, ora como um cabo de energia ou um fio de telefone). Além disso, o roteirista sempre demonstrou uma fascinação por tríades femininas, e acabamos revendo as três damas das primeiras páginas transfiguradas, mais tarde, nas Três Bruxas (de Macbeth) e também nas temíveis Fúrias (da mitologia clássica), entre outras entidades mitológicas. E a mitologia tem, de fato, um lugar central nessa trama.

Quem leu Vidas Breves sabe que o Mestre dos Sonhos tirou a vida de alguém da própria família, o que era considerado uma ofensa gravíssima na Antiguidade. A punição para ela ficava a cargo das Erínias (na versão grega) ou Fúrias (na versão romana), que desencadeavam os mais diversos infortúnios, culminando na destruição de quem praticara o crime de sangue. Não é à toa, portanto, que o título original do penúltimo volume de Sandman refere-se exatamente àquelas entidades vingadoras. Afinal, uma tradução mais apropriada para The Kindly Ones seria “As Benevolentes”. Esse era o eufemismo pelo qual as Fúrias eram chamadas, numa forma de superstição antiga, por se ter medo de nomeá-las diretamente. Aliás, no capítulo 4 da HQ, alguns personagens chegam a ser referir a isso, sugerindo chamá-las de “the kindly ones” (“as bondosas” na tradução da Conrad).

Mas nem só de mitologia clássica se faz Entes Queridos, uma HQ que funde realidade e ficção, terror e fantasia, citações literárias e referências televisivas, tudo costurado com uma narrativa impecável. A história começa de forma corriqueira, com a heroína aposentada Hipolyta Hall passeando com seu filhinho Daniel (que fora concebido no Reino dos Sonhos). Passamos depois para um irrequieto Corvo Matthew (às voltas com uma crise existencial) e somos reapresentados a alguns dos funcionários do Sonhar (como o faz-tudo Merv, a fada Nuala e o bibliotecário Lucien). Os acontecimentos começam a se acelerar quando Daniel desaparece misteriosamente e entram em cena personagens saídos de volumes anteriores. O que vemos nos capítulos 1 a 5 e 7 (as partes 6 e 8 são interlúdios) é uma escalada narrativa conduzida de forma magistral por Gaiman, que ainda nos presenteia com passagens engraçadas e diálogos brilhantes.

Mas nem só de seu roteiro se faz Entes Queridos, pois para termos uma ótima HQ são necessários desenhos da melhor qualidade. E é exatamente isso que vemos na maior parte das mais de trezentas páginas desse volume (em que se destacam algumas das mais belas da série Sandman). Embora dois capítulos e algumas sequências tenham sido produzidos por outros desenhistas (provavelmente por questões de prazos editoriais), a maior parte do trabalho ficou por conta do talentosíssimo Marc Hempel. Seu traço cartunizado e conciso, conciliado às cores de Daniel Vozzo, dá origem a imagens expressivas e comunicativas, servindo tanto para ressaltar os elementos mais cotidianos do roteiro, quanto os aspectos mais arquetípicos dos personagens (vide as Moiras ou os deuses nórdicos). E pode-se dizer que raras vezes o próprio Mopheus pareceu tão melancólico, exótico ou ameaçador.

A soma de todas essas virtudes é uma belíssima HQ em que o protagonista tem inicialmente uma participação colateral, personagens secundários assumem o primeiro plano e, ao final, temos uma conclusão inteligente e uma emocionada despedida. Para coroar o trabalho, um epílogo em que revemos as damas das primeiras páginas de volta ao papel das Moiras e às voltas com chás da tarde, biscoitos da sorte e metáforas metalinguísticas. Sim, no geral, Entes Queridos é uma obra-prima e provavelmente o melhor volume de Sandman. É também um dos últimos grandes trabalhos de Neil Gaiman nos quadrinhos, que deixou a desejar em seus trabalhos feitos para a Marvel. De qualquer forma, este penúltimo volume é um clímax mais que à altura de uma das melhores séries dos quadrinhos nas últimas décadas.

Sandman: Entes Queridos é um livro “de peso” (tanto em termos literários, quanto literais). Além das quatorze HQs, o volume traz as capas originais criadas por Dave McKean, um pertinente prefácio, um pequeno posfácio e uma detalhada seção de notas (embora algumas importantes citações literárias e referências a personagens da série tenham passado despercebidas pelos editores). Impresso em tamanho estendido (19xm x 28cm), com capa-dura e trezentas e sessenta páginas de miolo, a qualidade artística da HQ e a boa produção gráfica do livro devem garantir a satisfação dos novos e antigos fãs de Morpheus. E mesmo para quem não acompanhou a série desde o início, mas gosta de boas histórias com muitos elementos mitológicos, esse volume é uma ótima pedida!


Wellington Srbek nasceu em Belo Horizonte em 1974. É doutor em Educação e graduado em História pela UFMG, autor e editor de histórias em quadrinhos premiado nacionalmente. Profissional com vinte anos de experiência na criação e edição de revistas e livros, textos informativos e literários. É autor de trabalhos consagrados como o álbum Estórias Gerais e a série Solar, bem como de HQs infanto-juvenis e adaptações literárias. 

Resenha originalmente publicada no blog Mais Quadrinhos.







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