Crônica Felipe Braga Netto

A bola que não gostava de mim, uma crônica de Felipe Braga Netto

00:00Isabela Lapa


Já estamos na contagem regressiva para a próxima edição do livro As Coisas Simpáticas da Vida, do Felipe Braga Netto. E para dar continuidade ao meu projeto de mostrar para vocês o quanto as crônicas são incríveis, hoje vou postar mais uma. Veja: 

A bola que não gostava de mim 

“No meio do segundo tempo, o Sol, descendo entre montanhas, já quase sem ângulo para chutar, ainda mandava um pouco de luz às ondas verdes e espumas brancas. Ipanema estava linda e as ilhas brilhavam na tarde macia. (...). Ora, direis: meu tresloucado amigo, nem o Sol nem a Lua sabem nada de futebol. E eu vos direi no entanto que assim sentimos o bi-campeonato, nós os que estávamos na casa do Miguel”. 

Rubem Braga 

- Felipe, a bola, a bola! 

Eu esqueci da bola. Não seria tão grave, se o jogo não estivesse empatado, e meu time não precisasse vencer. Mas precisava. E estava empate. 

A partida era de basquete. Nunca, nas encarnações passadas, fiz isso, acho que não. Também não cresci o suficiente para esse esporte. Nem sei porque acabei aqui. Coisas da vida. Ou gracinhas dela, que às vezes posa de humorista. Pelo menos comigo. 

Meu instante de glória, recordação suprema do meu passado atlético, foi quando, garoto, no jogo de basquete entre colégios – que equivalia, ignorante leitor, a uma final olímpica –, o treinador, faltando pouquíssimos minutos para o jogo acabar, chamou os reservas que ainda não tinham jogado (honradíssima posição em que eu me encontrava) e nos colocou para fazer fita. 

Eu, ah, querida leitora, eu, com míseros segundos de partida, peguei aquela bola laranja, áspera e dura, circundada de linhas pretas, e... Confesso que não sei bem como, sei que fiz uma cesta magnífica. Sim, deixe-me repetir o adjetivo que só fiz uma cesta dessas na vida, não é hora de economia: magnífica! Com ponto de exclamação e tudo.

Acho, desconfio, que o técnico me olhou meio desconfiado, dizendo: ué... O espanto dele só não era maior que o meu. Aliás, nem prestei atenção ao resto do jogo, só saboreando meus majestosos segundos iniciais. Que cesta, que cesta! Claro que foi camaradagem do meu anjo da guarda, disso não duvido, e eu jurava que ele não entendia nada de basquete. Mas entende, o safado. E embora às vezes durma, estava lá, atento, de prontidão.

Devo dizer que tentei ser goleiro. Ainda garoto, não sendo muito bom com a bola nos pés, me convenci que seria com as mãos. Até comprei um livro de espetacular goleiro alemão, o nome não lembro, mas tinha ganho copas e tudo. O título era mais ou menos assim: “Como se tornar um magnífico goleiro”. Eu o li minuciosamente, e já me vi agarrando bolas dificílimas em finais repletas – decidindo, espetacularmente, jogos emocionantes. Sim, eu seria goleiro. Meu futuro estava traçado.

Comprei, com o dinheiro de minha vó, um esplêndido uniforme de goleiro, com luvas e tudo. As luvas, belamente brancas, tinham borrachas vermelhas nos dedos. Engraçado, escrevendo isso quase sinto o cheiro delas. Mas, enfim, era goleiro. Vieram os jogos e, ou o livro estava errado, ou eu devo ter pulado algum capítulo. Ou quem sabe a bola não leu. Não deve ter lido. Porque a analfabeta insistia em entrar, insistia em desmentir o brilhante goleiro que eu era.

Também, que mania de botar a bola em tudo. Estava tão claro no livro! Eu já sabia como sair do gol, em que canto pular, como um goleiro alemão pensa – pensando bem, acho que era soviético, sim, era, um tal de aranha negra, coisa assim – já almoçava, jantava, e até ficava parado como um goleiro.

Lembro que foi levemente ridícula minha chegada no campinho. Porque ninguém, além de mim, estava tão magnificamente trajado. Notando o disparate, pensei em voltar atrás, tirar as luvas, mas fui convencido, por um amigo, que não, comprou por que? É, comprei por que? Fiquei de luva e de uniforme esplêndido. Mas não sei se adiantou muito. A analfabeta da bola continuava a não entender nada.

Mas verdade seja dita: tive instantes de glória. Eu, que não sei jogar bola, já fiz gols sublimes. O meu preferido, deixa ver se me lembro, começava escapando de um violento carrinho, com um sutil toque sobre o adversário. Em seguida, levemente genial, dava um chapéu no zagueiro, na altura da grande área e, saindo o goleiro, impunha um leve toque de lado, pegando a bola do outro, cumprimentando o gol com calma e maestria.

Todos ficavam admirados: Deus, que gol! Que gol!

Eu fazia esse gol praticamente todo dia. Onde? Bem, lá no quarto, sonhando, feliz com o dom que Deus me deu. Porque futebol é bom, a bola é que atrapalha. Não simpatiza comigo. Eu a aborrecia, gorda bola? Talvez sim. Posso até ouvi-la resmungar quando me aproximo: “Ih, lá vem ele. De novo não. Ê sujeitinho desajeitado!”.

Senhora bola, façamos um trato. Eu não a incomodo mais com chutes torpes, e a senhora, em retribuição, quando perguntarem de mim, diz que sim, que tem saudades.

- Ah, o Felipe, lembro dele... Que espetáculo! Que charme, que ginga. Poucos souberam me tratar tão bem. Éramos amigos, talvez amantes.

Obrigado, querida bola, obrigado. Prometo que não chego perto. 

Felipe Braga Netto

Eu adorei, e você? 

Para conhecer as crônicas que postei nas semanas anteriores é só clicar aqui

O livro será publicado em breve em uma edição linda, com capa dura e várias ilustrações. 

Beijos, Isabela!

You Might Also Like

0 comentários

Obrigada por participar do nosso Universo! Seja sempre muito bem vindo...

Acompanhe nosso Twitter

Formulário de contato