A Identidade Cia das Letras

A Identidade, de Milan Kundera

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Milan Kundera é um autor que me surpreende a cada livro. A Insustentável Leveza do Ser, o primeiro livro dele que eu li, continua sendo o meu preferido do escritor e, inclusive, ocupa um lugar especial na lista dos livros que marcaram a minha vida. Contudo, isso não muda em nada o fato de que cada história que ele escreve conversa comigo, me toca e muda a minha percepção sobre algo. É incrível o poder que ele tem de abordar questões delicadas e nos apresentar personagens imperfeitos, que nos colocam diante dos nossos maiores e mais temidos questionamentos. 

Em A Identidade o escritor nos apresenta ao casal Chantal e Jean-Marc. Chantal é mais velha que o marido e começa a enfrentar uma crise de identidade e aceitação quando percebe que nenhum homem na rua olha para ela e expressa algum tipo de desejo. Ela acaba confessando essa sensação ao marido e, a partir disso, o livro começa a apresentar reflexões acerca do amor, da aceitação do outro com as suas imperfeições, do desejo sexual, da necessidade de ser amado, da relação com o corpo, da convivência com o outro e, principalmente, da busca pela identidade. 

"Por mais que dissesse que a amava e a achava bela, seu olhar amoroso não  podia consolá-la. Porque o olhar do amor é o olhar do isolamento. Jean-Marc pensava na solidão amorosa de dois seres velhos que se tornaram invisíveis para os outros: triste solidão que perfigura a morte. Não, o que ela precisa não é de um olhar de amor, mas de uma inundação de olhares desconhecidos, grosseiros, concupiscentes e que pousam nela sem simpatia, sem escolha, sem ternura nem polidez, fatalmente, inevitavelmente. Esses olhares a mantêm na sociedade dos humanos. O olhar do amor a exclui." 
Kundera mostra, por meio de uma linguagem leve e fluida, algo que temos o hábito, ou a conveniência, de esquecer: nós temos várias caras e podemos exteriorizar várias emoções e sensações ao mesmo tempo. Podemos cumular desejos que se convergem e cada uma das nossas escolhas conduz a uma consequência, seja ela boa ou não, esperada ou surpreendente. É exatamente nessa mistura e nessas incoerências que reside a nossa identidade.

Se não bastasse toda a trama interessante que o autor desenvolveu a partir da insegurança de Chantal enquanto mulher de desejos e de sonhos, a história também mostra as reveladoras e difíceis sensações de uma mulher em relação à perda de um filho. 

Chantal e Jean-Marc perderam um filho quando ele era ainda uma criança. Mas ela,  por mais que sentisse amor pela criança, se sentiu livre após perdê-lo. As contradições dos sentimentos, ao mesmo tempo em que revelam certa frieza da personagem, demonstram o quanto ela é humana e verdadeira com o que sente e pensa, mesmo que isso contrarie toda a lógica esperada e todas as atitudes sociais entendidas como corretas

“Meu querido, meu querido, não pense que não te amo ou que não te amei, é precisamente porque te amei que não poderia ter me tornado aquela que sou se você ainda estivesse aqui. É impossível ter um filho e desprezar o mundo como ele é, pois foi a este mundo que o destinamos. É por causa do filho que nos prendemos ao mundo, pensamos no seu futuro, participamos de bom grado de seus ruídos, de suas agitações, levamos a sério sua estupidez incurável. Com a sua morte, você me privou de prazer de estar com você, mas ao mesmo tempo me tornou livre. Livre diante do mundo que não amo. E, se posso me permitir não amá-lo, é porque você não está mais aqui. Meus pensamentos sombrios já não podem lhe trazer nenhuma maldição. Quero lhe dizer agora, tantos anos depois que você me deixou, que compreendi sua morte como um presente e que acabei aceitando esse terrível presente [...]”.
Nas poucas, mas incríveis páginas desse livro, Kundera mergulha no universo feminino e explora a mulher em sua essência. Na obra não existem discussões acerca do olhar da sociedade sobre a posição da mulher, mas sim discussões sobre a forma como elas próprias se sentem e se relacionam com a sua aparência, seus amores e suas dores. 

Não posso deixar de comentar que o escritor também coloca apresenta reflexões interessantes sobre as amizades e o quanto elas são essenciais para as nossas lembranças e a construção da nossa personalidade. 

Os personagens são complexos e muito cativantes, o que prende a atenção para a narrativa, que é extremamente envolvente. Ao mesmo tempo em que buscamos ansiosos pelo desfecho da história, cultivamos o desejo de que ela não termine, para que possamos explorar muito mais o universo psicológico de Chantal e Jean-Marc.

“Qual é o momento preciso em que o real se transformou em irreal, a realidade em sonho? Onde era a fronteira? Onde é a fronteira?”.  

Sem dúvida uma leitura que vale a pena! 
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3 comentários

  1. Amei suas reflexões sobre o livro já li a insustentável leveza do ser l, vou ansioso, comprar a identidade.

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  2. Anônimo23:20

    Na verdade o filho era de Chantal e seu primeiro marido.
    Ótima resenha

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  3. Anônimo11:44

    "Chantal e Jean-Marc perderam um filho"-o filho não é de Jean-Marc. É do primeiro marido de Chantal.

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